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Os Colares do Corpo

Levava como colares pendurados no corpo as dores que colecionara no tempo. Depois de todos esses anos, ela enfim encontrara uma forma de expressar com palavras o que sentia na carne. Aí estava: as angústias que vivera se haviam delineado como pingentes que ela carregava feito adornos a se lhe comporem num cipoal de pérolas invisíveis. Escorriam umas pela frente, algumas por trás, e outras ainda pelos lados, como longas tranças que desciam até a planta dos pés. Havia as que contornavam os seios e o coração, dando-lhes o circunspecto de firmeza inconstante que pulsava redonda; e também aquelas que pousavam ao longo do ventre, moldando o estômago e o útero num vaso recurvado e autocontido.

Embora muitas pendessem do pescoço, onde repousavam um desconforto de sobrepeso que instigava os ombros a se fecharem, forçando-a ao contínuo rememorar da necessidade de abri-los (um exercício que, por vezes, quedava esquecido), havia ainda as que rodeavam o quadril, dando-lhe a ardência de um cinturão de brilhos incrustados no movimento das cadeiras. E não podia esquecer daquela que incandescia como uma tornozeleira de diamantes pontiagudos ao redor da perna direita.

Sim! Carregava as dores como ornamentos preciosos, cada uma um presente divino desenhado em seu ser terreno pelo movimento engalfinhado que as amarras do tempo haviam arrastado na argamassa mista de mente e corpo. Aprendera aos poucos a ter carinho por essas marcas, aceitando-as mais como indícios de vida do que presságios de morte. Eram, afinal, esculpidas na pedra macia da sua musculatura; marteladas no compasso da sua pulsação; tecidas com as linhas finas dos seus sentimentos; guiadas num caminho que fora desbravado pela agulha em espada do seu pensamento. Demarcavam, de alguma forma, os traços que ela própria esboçara em si com a matéria-prima que se lhe fora dada.

Cada dia, cada hora, cada movimento era regido por um diferente colar. No café da manhã, eram os ombros que pendiam mais fechados e exigiam um alongamento espreguiçado para se soltar. Quando caminhava na rua, ardia como um ponto semiescuro a corrente prateada que lhe roçava a lombar. Quando se equilibrava no transporte público, era a vez da tornozeleira lembrá-la do instinto de não lhe sobrecarregar. Às vezes, depois do almoço, sentia fundir-se o estômago, muito exigente ao se alimentar – e isso para nem falar dos dias de cólica que pressagiavam uma volta completa do ciclo lunar. E assim iam as dores do dia, encadenando-se como rimas pobres há muito sabidas no seu declamar.

O fim de tarde era, em geral, o horário em que elas mais amenizavam. Por essas cercanias, ela costumava exercitar-se na devoção do culto do corpo, uma prática levada a cabo na reclusão do Templo de Si: solitária e silenciosa, fechava-se ao mundo numa abóbada de música, pensamentos e consciência corporal. E, talvez até mesmo em nome do ritual, escolhia um tanto inconscientemente o momento para deixar os pendores de lado. Depois, distraída num vinho, num livro, num filme ou em algum amor, não se lembrava de recolocá-los. Era só mais à noite, quando, por um instante, a mente esquecia de se esquecer, que os colares outra vez pendiam antevendo o dia que se ia fazer. Essas eram, talvez, as horas mais desafiadoras: quando o colar do coração ardia com força, como se batesse no interior do seu peito o chamado ardiloso de um tentador alheio que a convidava a se entregar a outro tipo de esquecimento – um olvido que liberaria o fluxo de desespero das dores numa correnteza há muito domada, que subitamente reemergia dos pavilhões desconhecidos da mente, desejosa de outra vez soltar-se com toda a força bruta da natureza.

Sempre se sabia em risco de ver renascer, num desses impulsos incontidos, a velha dinâmica pela qual se guiava seguindo as ordens dos antigos anseios – pois o amansar do império da dor não lhe fora fácil. Pelo contrário, demandara um árduo trabalho de reinvenção, de construção de um novo olhar que pudesse lançar sobre si. Não era instintivo esse carinho zeloso pelas marcas da vida, que lhe permitia se contar histórias de paz onde o corpo formara-se em guerra. Séculos haviam passado até que ela conseguisse compor-se nesse exercício de amor para consigo, e outros tantos teriam que se suceder antes que ela pudesse aceitar-se sem sombra de dúvidas pacificada. E, ainda assim, mesmo que a vida se lhe concedesse a dimensão milenar da existência – aquela existência oculta da profundeza do mundo, que corre incompreendida nas veias do tempo –, mesmo que a ela fosse permitido conjugar-se com o longo vazio das eras, perdendo de si o elemento ensimesmado e fundindo-se ao alento da natureza; ainda que ela pudesse realizar esse movimento de eternização e, de alguma maneira impossível, conseguisse no processo preservar do “si” aquela matéria essencialmente efêmera da consciência, contradizendo todos os limites que a própria vida impõe como um portal intransponível… Ainda que tivesse todo esse tempo, seria difícil saber se ela alcançaria um perpétuo estado de paz inabalada.

Pois agora soava-lhe cada vez mais verdadeira a convicção de que a vida é conflito – a vida é dor e é sofrimento. Mas não no sentido óbvio de dizê-lo. Pelo contrário: a vida, para ela, parecia o atrito do ser nas coisas, e a dor era tão somente o reflexo do movimento. Era possível contorná-la, escapar do seu agarro, mas só com a experiência do tato – é, afinal, só tocando o espinho com a ponta esponjosa do dedo que se conhecem os efeitos do ato, e a essa altura o destino inevitável do corpo é que se recomponha cicatrizado.

E assim, então, se olhou: com olhos que enxergam o invisível, notando todos os caminhos desenhados em si nas voltas do tempo. E soube como amá-los – como amar-se e respeitar-se com paciência e contentamento. Pois percebeu que abraçar suas dores era contar-se uma des-história: era desnarrar-se, soltando os nós que se havia atado para que a energia – as palavras, o seu vento – fluísse com naturalidade, sem sufocamento. Afinal, se os colares de dores que se havia marcado no corpo foram traçados com a força do pensamento – o pensamento que, ao contar-se verdades de mitos e vaidades e dizer que sofrera, impusera-se dobras e contrariedades –, só descontando-se encontraria sua tranquilidade.

E foi moldando-se à imagem do nada, descaminhando suas trilhas de pedra, desatando seus brilhos ao abraçá-los com o carinho do vazio. Não porque soubesse que este era o caminho – afinal, aprendera que o exercício de saber e seguir por trilhas é traçar sobre si os fios por onde se tecem as dores, e não era esse o propósito do seu desvio; pelo contrário: foi simplesmente porque o carinho era o que agora fazia sentido. A des-história que ela desdesenhava sobre si não tinha propósito ou objetivo: era só o abraço do esquecimento caloroso em cuja fornalha podem, talvez, sem motivos concretos, derreter-se os espinhos. E, a bem da verdade, a vida prossegue com seus andores: se, por um lado, ela se descontava, desenlaçando as histórias danosas que sobre si outrora marcara, em outros frontes seguia avançando, compondo novas veredas por onde enredar-se – pois a vida, dizia, é essa coisa que vai machucando, que vai desenhando e marcando, e há dores que vêm para ir embora, mas outras carrega-se na eternidade do breve sopro.

Como caderno de pintora, coberto de retalhos, contornos, rabiscos e manchas de borracha, ela se cultivaria. Ela era história e des-história, narrativa e desnarrativa, o vazio e a plenitude, a segurança constante e a vicissitude. E se encontraria de novo, e de novo, e de novo, nas memórias e desmemórias do corpo, esse poema em carne-viva, essa pele que sobre si própria desliza, delineando num instante a silhueta de um dragão, depois uma libélula, em seguida uma flor que escorre num rio de néctar, que vai se diluindo em água, tornando-se incolor, para em correnteza contornar uma pedra e então se acumular num mar negro de onde emergem, como fios de tinta branca, gaivotas em revoada levando no bico a sua pesca; e então as gaivotas sobem tão alto em seu voo que subitamente ardem em fogo, transformando todo o céu numa árvore vermelha a chorar suas folhas secas sobre o solo que, se enchendo da pelugem outonal, vai virando um cobertor de linho quente e macio, que se cobreia e arrepia, transmutando-se numa argila maleável, sobre a qual pousam as mãos do destino a esculpi-la na forma de um jarro – um enorme vaso alado onde se guardam, desconhecidos e sem contorno, infinitos segredos. E eis aí, para hoje, o sentido final: ela se fez em ânfora, e nela estão contidos todos os fluxos do seu sangue vinho, que corre fervendo, subindo e descendo, infiltrando os poros de barro do seu limiar recôndito e revelando em si a eterna presença de todos aqueles mistérios vindouros do mundo, de tudo aquilo que ela ainda está por viver, inventar e descontar.

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