"Quanto mais transparente a escrita, mais visível a poesia"

Gabriel García Marquez

Clique aqui para adquirir a sua cópia do meu livro 'Histórias de Terra Água e Sal'

Produção Literária

Minha relação com a escrita está profundamente enraizada na arte da literatura. Na tenra infância, aprendi a brincar com as palavras. Na adolescência, explorei os diferentes estilos de escrita literária, me aventurando pela poesia, a crônica e o conto como formas de expressar o que guardava no meu interior. Na vida adulta, amadureci meu relacionamento com a língua, aprendendo a passar a complexidade dos sentimentos e pensamentos internos de maneira profunda e clara. Em 2023, lancei meu primeiro livro, 'Histórias de Terra, Água e Sal', que traz uma coletânea dos melhores contos da minha juventude (clique na imagem à esquerda para saber mais e adquirir o seu). Nesta seção, disponibilizo alguns desses contos, além de outras obras inéditas em que tenho trabalhado.

Photo by Pixabay on Pexels

Amor Ocre

O teu amor tem um cheiro de déjà-vu que me faz acessar outros amores mais antigos entre os quais a memória ainda fresca de ti rapidamente se instala. É o odor das árvores ancestrais, dos olmos longevos que desenham de ocre a minha jornada pelos teus descaminhos; odor que me acomete com suas farpas finas – farpas frágeis ao toque, mas irrefreáveis no seu poder de perfuração; odor verde-musgo dos folículos delgados de pinheiro que facilmente amadeiram o ar que dança nos meus pulmões, seduzindo com sua beleza imemorial – mas que com igual espontaneidade se instalam dolorosos por entre as camadas da minha pele, pulsando nela uma ardência que oculta os vestígios do machucado.
Photo by Harrison Haines on Pexels

Vento de Ohio

De repente um sopro do vento me trouxe em seu hálito quente a lembrança perdida de um dia de infância em Ohio. Ele tinha um odor de verão outonal – uma mistura de folhas secas, cujos veios craquelantes vertiam um pólen temperado de amarelo sazonal ao alento, com o aroma distante e fugaz de protetor solar e suor que exalava do meu próprio corpo e subia às narinas misturado nas voltas bruxuleantes da lufada de ar. A corrente se embrenhou por sob minha camisa, aquecendo-me uma suave e seduzente carícia ao correr seus dedos da minha lombar ao pescoço, gentilmente guiando-me as sensações rumo a um estado de prazer inocente que me transportou de volta à meninez. E eu me surpreendi com que tamanha facilidade os sentidos podiam dirigir-nos – nós, humanos – o torpor inconsciente (a que gostamos de chamar por “mente”) nas direções aleatórias a que seus desígnios fortuitos julgarem momentaneamente mais propícios.
Photo by Hamza Laafou on Pexels

A Névoa

Foi então que eu entendi que uma grossa névoa me encobria.

Quando olhava o mundo, parecia enxergá-lo sempre tão nítido; as curvas do engano, coitadas: olhava-as de longe e, desde o princípio, já conhecia suas mentiras esguias. Especialmente em se tratando do corpo e de sua linguagem: para lê-lo, me assemelhava a um profeta. Predizia com perfeição as intenções que se esboçavam nas aparentes contradições que os mais discretos movimentos produziam. Parecia ser capaz de farejar tensões sexuais no ar com a fina navalha do olfato; era capaz de envolver por inteiro na mão as tristezas alheias com um simples toque; escutava as profundezas de uma confusão interna qualquer mesmo que de relance; conseguia mirar uma dor direto em seu âmago apenas com um olhar lançado certeiro dentro dos olhos de outrem. O mundo – os outros – se-me revelavam com uma facilidade imensa. Bastavam uns poucos instantes e lá estavam eles, expostos.

Os Colares do Corpo

Levava como colares pendurados no corpo as dores que colecionara no tempo. Depois de todos esses anos, ela enfim encontrara uma forma de expressar com palavras o que sentia na carne. Aí estava: as angústias que vivera se haviam delineado como pingentes que ela carregava feito adornos a se lhe comporem num cipoal de pérolas invisíveis. Escorriam umas pela frente, algumas por trás, e outras ainda pelos lados, como longas tranças que desciam até a planta dos pés. Havia as que contornavam os seios e o coração, dando-lhes o circunspecto de firmeza inconstante que pulsava redonda; e também aquelas que pousavam ao longo do ventre, moldando o estômago e o útero num vaso recurvado e autocontido.

O Temporão

Ele permanecera estático à beira do rio durante o que pareciam eras. As águas não rugiam a torrente furiosa de corredeiras, mas também não havia nelas o silêncio dos rios largos e enganadores, que seduzem com promessas de paz enquanto escondem seu puxo feroz no fundo oculto. Elas falavam uma língua branda porém sincera, a quietude das margens salpicada de pequenas quedas d'água escorrendo sobre as pedras a tracejar seu caminho. Um convite e um alerta.

O tempo parecia parado, embora os sinais de sua passagem se multiplicassem. O sol se mantinha fixado nos céus, seus raios discretamente escorrendo por detrás da densa ramagem das muitas árvores no entorno. E por mais que não se movesse, era óbvio que o astro já havia circundado a Terra inúmeras vezes enquanto o rapaz estivera ali. O calor do dia e o frio da noite haviam se alternado em seu rosto. A pele estava úmida de suor e orvalho, as várias horas da manhã e da tarde se acumulando entre a fina pelagem dos braços, grudando no pescoço nu.

A estranha história da vila serrana de São Pedro da Enseada

A notícia se espalhou pela cidade de São Pedro da Enseada numa velocidade estonteante. Antes mesmo que o sino da igreja matriz badalasse as sete horas da manhã, os residentes já se aglomeravam na praça central alardeados pela estranha novidade. O furdunço tomara vida própria, pois o barulho da concentração atraía cada vez mais curiosos. Isso para não falar nos meninos que corriam pelas ruas adjacentes anunciando a nova num estardalhaço, despertando incautos qualquer um que ainda estivesse absorto na surrealidade rotineira dos seus sonhos.