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O Temporão

Ele permanecera estático à beira do rio durante o que pareciam eras. As águas não rugiam a torrente furiosa de corredeiras, mas também não havia nelas o silêncio dos rios largos e enganadores, que seduzem com promessas de paz enquanto escondem seu puxo feroz no fundo oculto. Elas falavam uma língua branda porém sincera, a quietude das margens salpicada de pequenas quedas d'água escorrendo sobre as pedras a tracejar seu caminho. Um convite e um alerta.

O tempo parecia parado, embora os sinais de sua passagem se multiplicassem. O sol se mantinha fixado nos céus, seus raios discretamente escorrendo por detrás da densa ramagem das muitas árvores no entorno. E por mais que não se movesse, era óbvio que o astro já havia circundado a Terra inúmeras vezes enquanto o rapaz estivera ali. O calor do dia e o frio da noite haviam se alternado em seu rosto. A pele estava úmida de suor e orvalho, as várias horas da manhã e da tarde se acumulando entre a fina pelagem dos braços, grudando no pescoço nu.

Todavia, não sentia fome. Não aparentava cansaço. Não lhe consumiam os desgastes mundanos de ser humano, o que o levava a crer que talvez houvesse passado apenas um breve instante desde que alcançara a beira das águas. Os minutos se cobriam dessa estranha mistura de sentidos, como se tivesse perambulado para dentro de outra dimensão onde o tempo corre diferente. O caminho até ali através da floresta parecia um sonho distante.

Só o que o perturbava era o rio. Queria cruzá-lo, mas temia fazê-lo. A beleza dos pedregulhos coloridos dançando debaixo da superfície transparente era de fato sedutora, no entanto sabia dos perigos que se agigantam com cada passo, a firmeza deles desfazendo aos poucos, até o momento em que a incerteza da liquidez toma controle do corpo. Nada exigia a travessia; nenhuma grande jornada do lado de lá. E ainda assim persistia aquele impulso inquietante de entrar, um congelamento dúbio entre o desejo primal e o medo protetivo, como um transe mesmerizado – os sons da correnteza chamando-o de volta a um estado que ele desconhecia.

Foi quando um pensamento lhe cruzou a mente. “Se colocar um pé, pode ser que o rio esteja gelado, e então eu desista”. E foi o que fez. Porém a temperatura era branda – a corrente suave corria com deliciosa leveza debaixo da sola descalça e entre os artelhos. O chamado crescia. Decidiu que daria um pequeno passo adentro, apenas os calcanhares submersos. A água contornou seus tornozelos e encobriu os pés numa onda fina, fazendo uma cascata em miniatura semelhante às que escorriam das pedras ao seu redor. Agora o rapaz sentia que não era mais um mero observador da paisagem: havia transcendido a contemplação e fazia parte daquele cenário e seu canto.

Fechou os olhos por um instante e respirou profundamente, inspirando o ar fresco, a luz calorosa e a umidade macia da brisa. O medo aos poucos o evadia, e ele confiava cada vez mais no seu controle. “Vou apenas até onde seja seguro”, ele se disse. “Seria um enorme desperdício deixar de aproveitar essa água”. Começou a andar cuidadosamente sobre os pedregulhos lisos procurando o chão mais firme. Foi entrando – primeiro as canelas, depois os joelhos, em seguida as coxas... Quando estava na altura dos quadris, parou novamente. O leito aqui era macio, dominado por uma espessa lama que emoldurava delicadamente a planta dos pés. Ele percebia o fluxo da correnteza, mas essa massa pegajosa lhe dava mais segurança; enquanto estivesse em contato com ela, tudo ficaria bem. Até se deu a liberdade de soltar um pouco as pernas, flexionando-as para mergulhar o torso e se deixar balançar na levada do rio.

Submergiu totalmente para molhar os cabelos e, no retorno do batismo, parou com os olhos na altura das águas. Se sentia outro; uno com a natureza. Foi girando lentamente assim, encolhido, seguindo o rumo que o rio mandava enquanto mirava a paisagem. Os sons da mata se alternavam entre abafados e plenos conforme os ouvidos desciam e subiam através da superfície líquida. Estava em paz. Tão em paz que mais uma eternidade pareceu se passar naquele momento. Tão em paz que não percebeu como aos poucos o rio o guiava para dentro numa dança silenciosa de enganação, forçando o corpo retraído a ir se esticando para manter o nariz em respiração.

Foi nessa distração descontraída que o rapaz de repente bateu com o calcanhar em alguma coisa e tropeçou. Ainda tentou se reequilibrar dando um passo para trás, mas descobriu, para seu desespero, que trombara com uma grande rocha lisa coberta de musgo. Escorregou nela e afundou num segundo. O rio, até aqui paciente em sua caçada, deu o bote: engoliu o menino numa abocanhada súbita, levando-o para o fundo.

Ele se debateu freneticamente na surdez do horror. Mas não havia acima, não havia abaixo; nada a que se agarrar. As águas, outrora cristalinas, agora giravam num turbilhão de escuridão. Sua mente já inundara, turvando os sentidos. Ele se resumia ao breve sopro que rapidamente se desfazia em seus pulmões. Aproximava-se o minuto em que não suportaria e precisaria tragar. Onde está a sensação de eternidade? Aonde foi o tempo? Eu preciso de tempo, mais tempo, dá-me tempo!

Num repentino empurrão, sua prece pareceu ser ouvida. Esticou a cabeça para fora e puxou todo o vento que pôde com o que tinha de forças. No entanto, breve foi a dádiva do sopro. Tão logo emergira em sua confusão, sentiu uma mão agarrá-lo pelo calcanhar e puxá-lo novamente adentro. Seu olhar mergulhou nas profundezas procurando entender quem poderia estar ali.

Ele congelou.

Um arrepio frio subiu sua espinha. As pálpebras arregaladas. As pupilas dilatadas. Lá estava ela, às claras entre as trevas. Os olhos brancos como a luz; a pele vermelho sangue; os cabelos negros e lisos, ariscos como os da Medusa; e uma longa cauda escurecendo rumo ao desaparecimento. Era uma Iara. Ou um demônio. Talvez o anjo da morte…

E eis que, de novo, ele percebia o tempo infinito. Mas dessa vez era diferente. Dessa vez era a paralisia do mundo. A eternidade da beleza havia cedido lugar à perpetuidade do medo. Ao vazio. Àqueles olhos inexpressivos e ainda assim cheios de uma fúria primal que o pequeno garoto até então desconhecia. Era o fim. Ele podia sentir. Seu corpo começou a relaxar. As extremidades formigavam. A visão embaçando. Mas o menino queria mais tempo. Pedia por tempo. Devolve-me o tempo! Dá-me mais tempo. Não sei por que tempo, mas tempo…

Vendo as palavras em seu rosto, a Iara se ergueu frente ao jovem quase inerte debaixo d'água. Ela o fitou profundamente com um olhar que ele não soube reconhecer. Era ódio e compaixão, amor e frieza, a dúvida em meio à certeza, ou o que quer seja que comove as criaturas e forças ocultas do submundo esgueirando perdidas nas profundezas. Morosamente, ela lhe deu as costas e começou a sumir na escuridão. Quando quase desaparecia, sua cauda surgiu num estalo rasgante que o jogou para longe na correnteza.

Ele cambaleou pelo leito, esbarrando em pedras e sacudindo a areia. E percebeu que sentia o chão; enxergava a luz. Levantou-se como pôde, agarrando-se às grandes rochas por entre as quais se chocava, e engoliu um longo e doloroso suspiro. Arrastou-se para fora das águas e, prostrado à margem, vomitou fora o líquido que respirara. Olhou ofegante para o rio – a visão doendo, a mente tremendo e o sangue correndo no pulso errante do coração que palpitava forte no peito. Viu as pequenas cachoeiras e redemoinhos batendo contra o penedo. Viu o desenho da corredeira no espelho da superfície, branda nas bordas e intensa no meio. Sentiu o calor do sol contra as costas molhadas e as longas lágrimas fluviais que corriam dos seus cabelos. Teve fome. E soube que tinha tempo.

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