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A estranha história da vila serrana de São Pedro da Enseada

A notícia se espalhou pela cidade de São Pedro da Enseada numa velocidade estonteante. Antes mesmo que o sino da igreja matriz badalasse as sete horas da manhã, os residentes já se aglomeravam na praça central alardeados pela estranha novidade. O furdunço tomara vida própria, pois o barulho da concentração atraía cada vez mais curiosos. Isso para não falar nos meninos que corriam pelas ruas adjacentes anunciando a nova num estardalhaço, despertando incautos qualquer um que ainda estivesse absorto na surrealidade rotineira dos seus sonhos.

Os primeiros na cena tinham sido os comerciantes e lojistas, que chegaram, como de costume, logo após o canto do galo de dona Maria Lourdes (sempre pontualmente antecipado aos outros galináceos locais nos encargos da cantoria matinal) para abrir seus negócios. O evento inusitado aconteceu, afinal, num dos estabelecimentos comerciais do centro – a loja de seu Jaime. Para ele, tudo parecia se desenrolar dentro dos ritos da normalidade até então: a luz crepuscular fora da janela do seu quarto era a mesma de todos os dias, assim como o gradativo despertar da vida silvestre nas montanhas do entorno (materializada no som dos passarinhos que davam os primeiros gorjeios da manhã); o café tinha o mesmo gosto do coador de metal de sempre; as roupas eram as mesmas da segunda-feira passada; a troca de cumprimentos silenciosos de olhos semicerrados – ainda carregados de sono – com seus colegas mercantes, o tilintar do molho de chaves ao retirá-lo do bolso, o estrondo metálico ao abrir a porta de rolar… Tudo corria como de costume.

A surpresa veio quando bateu os olhos dentro da loja. Estava tudo encharcado, coberto de conchas, ouriços e estrelas-do-mar; o balcão do caixa e as prateleiras de artesanato, seu principal produto, haviam se tornado a base fundante de corais que floresceram da noite para o dia em forma de colônias coloridas; isso para não falar no tremendo cheiro de maresia que infestava o ar. Espantado, seu Jaime ainda tomou um rasante duma gaivota que saiu voando de trás do balcão com uma sardinha no bico. O grito que soltou com o estabanado bater de asas da ave chamou a atenção de seu Lourenço, que abria a papelaria logo ao lado e veio correndo acudir o colega. “O que é isso, Jaime”, ele riu ao ver o estado do comércio, “decidiu vender o mar na serra?”.

O espetáculo de palavrões e ofensas proferidos por seu Jaime contra os céus (passado o susto) foi, a princípio, o que chamou a atenção dos demais. Logo, seu Fernando, o sorveteiro, e seu João, do mercadinho, se juntaram à dupla na averiguação daquele excêntrico fenômeno. Seu Jaime lembrou que o filho mais velho, Jaiminho, ficara responsável por fechar a loja na noite anterior. Teve a ideia de acusá-lo pelo desastre bem na hora que alguns meninos desciam a rua a caminho da escola. Seu João, vendo um dos frutos da sua própria prole entre os garotos, gritou para o rebento que fosse correndo até a casa de Jaime acordar o primogênito do infeliz marejado. O restante dos guris, provavelmente mais pela diversão do que por genuína preocupação, achou por bem fazer o mesmo pelo restante do povoado.

Quando Jaiminho enfim chegou na suposta cena do crime, o escarcéu já se fizera na cidade. Dezenas de pessoas se amontoavam em frente à loja, e só com muito esforço o moçoilo passou pela multidão para alcançar o lado de dentro do estabelecimento. Questionado pelo pai sobre o significado daquilo tudo, ele se disse tão surpreso quanto qualquer um ali e recomendou que chamassem o delegado para averiguar o autor da pegadinha.

O delegado tratou de acalmar a multidão repetindo o velho bordão de policiais que tentam ocultar sua própria preocupação: “não há o que ver por aqui”. Ao proprietário, porém, afirmou que não podia fazer nada, já que não haviam câmeras de segurança ou testemunhas presentes no momento do infortúnio. A única alternativa, no momento, era registrar uma ocorrência nos anais da delegacia, caso seu Jaime estivesse disposto a ir até lá para dar seu depoimento e assinar alguns formulários. Acrescentou que, particularmente, nunca vira algo do tipo, nem sabia como alguém teria conseguido trazer tanta água e vida marinhas até essa lonjura dentro do continente só para pregar uma peça num lojista honesto duma cidade pacata.

No fim do dia, corria na boca miúda a versão de que o espírito do mar subira a serra para fazer valer o nome de São Pedro da Enseada (que até então nunca fizera sentido para ninguém) e a loja de seu Jaime fora escolhida para o batismo pois Jaiminho estivera no litoral umas semanas antes, o que o tornava o são-pedrense de contato mais recente com a entidade. À noite, o acontecimento já era tratado como uma curiosidade (exceto, é claro, na família do lojista, preocupada com os prejuízos materiais do evento), e a maioria do vilarejo imaginava que aquele dia se tornaria uma anedota excêntrica da história local.

Os dias que se seguiram, entretanto, rapidamente refutaram a hipótese de singularidade do caso. Na manhã de terça-feira, foi a vez da mercearia de dona Lívia alvorar refogada. Não sobrou uma fruta para dar testemunho de suas raízes em terra: os cachos de banana tornaram-se aglomerados de pepinos-do-mar, os abacaxis se converteram em poríferas majestosas e os melões transmutaram em arfantes baiacus. Na quarta-feira, foi a loja de tapetes de dona Odete que, para seu horror, se transfigurou num lodaçal de mangue onde arraias coloridas em padrões persas e chineses se amontoavam em rituais de acasalamento. Quinta-feira trouxe um baque para os cachaceiros locais, já que no bar do Toninho todas as garrafas de bebida experienciaram o milagre da transformação da pinga em água salgada e a mesa de bilhar virou um rochedo em miniatura com tocas onde caranguejos numerados se encaçapavam.

Seu João fez o que pôde para se proteger do espírito marítimo que assombrava os comerciantes: interditou a peixaria do mercado, proibiu o consumo de frutos do mar em casa, mandou cobrir todas as estantes do comércio com toalhas e até selou as portas do estabelecimento com sal grosso. Talvez essa última atitude tenha saído pela culatra, pois na sexta-feira a cidade acordou com um cheiro intragável de sal e peixe morto vindo do mercadinho. Lá dentro, todos os corredores do empório haviam se convertido em imensas dunas salinas recheadas de linguados, abadejos, tilápias e bacalhaus que atraíam revoadas de pelicanos e bandos de leões-marinhos.

A essa altura, o vilarejo começava a abandonar o clima de curiosidade risonha e despreocupada dos primeiros dias, substituído gradativamente pela apreensão coletiva. Os moradores ansiosos se mostravam cada vez menos propícios a piadas e fuxicos especulativos sobre os acontecimentos da semana. A outrora pacata rotina do delegado, que vivia de levar moleques arteiros e bêbados brigões para casa, repentinamente se abarrotara numa agitada investigação de proporções épicas. Mas, sem informações relevantes nem condições de lidar com tantas reclamações (frequentemente descabidas), denúncias (regularmente equivocadas) e evidências (reiteradamente inverossímeis) que se empilhavam no seu escritório, o chefe da polícia não conseguia fazer outra coisa além de colher os depoimentos dos lojistas afetados e registrar as ocorrências no sistema.

Quando, no sábado, não só a banca de revistas de Bento Gaspar apareceu apinhada de algas marinhas no lugar dos jornais, mas também a própria praça e algumas ruas do entorno despertaram com bancos de areia, ostras, albatrozes e poças que mais pareciam lagoas onde o resquício da maré alta se aprisionara, o pânico enfim ultrapassou o controle das autoridades seculares. Os residentes apelaram, então, a um poder superior às potestades mundanas – uma força que, inclusive, lhes parecia mais bem-preparada para elucidar o enigma marítimo do que as pequenas superstições que até aqui haviam remendado a visão espiritual do povoado.

O clérigo estivera ciente dos acontecimentos desde o princípio. O campanário da igreja onde residia era um excelente camarote para assistir às tramas da vida cotidiana encenadas na praça central, que concentrava a maioria dos estabelecimentos afetados pelo marejamento misterioso. De início, ele suspeitava que fenômenos terrenos estivessem por trás dos artifícios aquáticos – talvez fossem de autoria de um ou outro piadista com muito tempo livre em mãos –, no entanto o contínuo agravamento dos eventos e a incapacidade da polícia em encontrar explicações plausíveis para eles o levou a desconfiar do envolvimento de elementos sobrenaturais.

Ao receber, no sábado, as súplicas de inúmeros moradores aturdidos com a contaminação das áreas públicas da cidade pelos sintomas marinhos outrora confinados aos comércios particulares, o sacerdote acalmou o vilarejo com a promessa de um sermão voltado inteiramente para a questão no serviço dominical da manhã seguinte. Ficou até altas horas da noite pesquisando as Santas Escrituras em busca de inspiração divina para esclarecer os fatos. Analisou as histórias bíblicas de contexto mais oceânico: o dilúvio e a arca de Noé, a abertura do Mar Vermelho por Moisés, as aventuras pesqueiras e andarilhas de Jesus no Mar da Galiléia, mas nenhuma delas parecia fazer apologia direta aos acontecimentos de São Pedro da Enseada.

No alvorecer, ele se deparou com uma congregação absolutamente abarrotada, ávida por respostas. Respirou fundo para conter a insegurança e, após mais alguns minutos de reflexão silenciosa no púlpito, recontou ao rebanho aflito a parábola de Jó, cuja fé Deus decidira testar sem motivo aparente. Falou da resiliência deste homem ungido, da sua inabalável confiança no Senhor a despeito do caos que se instaurara no mundo e em sua vida. Contou das bênçãos que o Altíssimo derramou sobre o servo fiel, vencidas as provações, e explicou como a fé virtuosa é capaz de mover montanhas e fazer o mar se abrir, até quando nada parece ter sentido e as esperanças se esvaem.

O sermão inspirado teve um efeito imediatamente revigorante na comunidade. Os são-pedrenses se sentiram subitamente empoderados para enfrentar seu martírio. No decorrer das semanas seguintes, mesmo frente à multiplicação dos fenômenos marítimos nas lojas, ruas e casas, os moradores se uniram num esforço de recuperação do seu vilarejo: as mulheres passavam as manhãs puxando as águas salgadas para fora dos edifícios e ocupavam as tardes dirigindo o fluxo dos córregos salinos nas estradas rumo a uma campina especialmente designada para receber os rejeitos aquosos; as crianças empregavam boa parte dos seus dias no recolhimento de conchinhas e outros pequenos apetrechos marinhos, onde quer que os encontrassem; os jovens ficavam responsáveis por retirar os entulhos mais difíceis, como os recifes endurecidos que se estabeleciam nos telhados e paredes, enquanto os homens se encarregavam do translado das faunas litorâneas de grande porte (focas, fragatas e, numa circunstância, até uma lula gigante) que vinham perturbando o equilíbrio ecológico da região.

Por um tempo chegou a parecer que a cidade se adaptara à nova realidade. Alguns habitantes até conseguiram encontrar prazer nas suas rotinas noviças e beleza na paisagem modificada. O fluxo das mudanças, contudo, estava para se intensificar, e é um fato bem sabido que as rochas não se deixam levar pela liquidez das águas com leveza espontânea – antes, tornam mais evidente seu caráter empedernido.

Foi assim que os corações de seu Jaime e sua esposa, Lisbella, reagiram à declaração estonteante de Jaiminho. Quando o primogênito anunciou para eles as recém-brotadas guelras e nadadeiras dorsais, que o tornavam um homem-peixe e, portanto, desinteressado das missões de desafogamento de São Pedro da Enseada, seus átrios cardíacos petrificaram de medo. Primeiro pelo pensamento de perder o filho para o mar, depois pela vertigem de perderem eles próprios sua essência para essa entidade monstruosa que ia pouco a pouco devorando não só a solidez debaixo dos seus pés, mas agora também os alicerces da sua humanidade. Horrorizados, quiseram levar o filho ao médico. Depois, ao pároco. Porém, frente à insistência de Jaiminho em abraçar a existência aquática, acabaram aceitando, com o peito pesado, a mudança do rebento para o litoral, onde ele poderia levar a cabo seu estilo de vida marítimo longe dos olhares do pequeno vilarejo supostamente terrestre.

Apesar dos esforços da família em esconder o fato, logo começaram a circular na cidade rumores da peixificação da estirpe de seu Jaime e Lisbella. Não demorou para outras histórias similares virem à tona. A segunda filha de dona Odete da loja de arraias, Olívia, trocou a pele cor-de-bronze da sua linhagem materna por uma cor-de-prata de aparência emborrachada, além de desenvolver um orifício respiratório na parte de trás do pescoço e uma estranha linguagem de estalidos. Bento Gaspar, da banca de algas, substituiu os pés por uma cauda azul-marinho. Por essa época, o esforço de livrar as ruas da água salgada já se mostrara infrutífero, e a maioria delas se convertera em canais onde a maré corria na altura da cintura durante as vinte e quatro horas do dia, o que permitia que o jornaleiro fosse da sua casa ao trabalho a nado, dando saltos e piruetas esparramantes. E, para não dizerem que falamos só dos jovens, houve também o emblemático caso de seu Gonçalves, um velho residente de São Pedro da Enseada que adquirira o hábito de visitar o bar do Toninho todos os dias desde que se aposentou do trabalho no campo. Certa noite, perante o olhar atônito de todos no boteco, decidiu concluir o processo de enrugamento da sua epiderme de uma só vez: transformou-se numa esponja boquiaberta e permaneceu sentado ao lado do balcão a receber constantes doses de regagem pelo resto da vida.

Os relatos de metamorfose se tornaram tão prolíferos que logo deixaram de ser novidade. Despontaram, então, os primeiros sinais de segregação na cidade. Por um lado, muitos são-pedrenses ainda lutavam contra as águas, construindo diques e muretas cada vez mais altos em torno de suas casas para impedir a entrada das torrentes. Simultaneamente, os residentes transmutados recebiam o crescente volume das marés como uma dádiva, resolutos em sua nova visão de adaptação a todo custo. Para eles, a transformação da terra em mar era inevitável, portanto não fazia sentido se apegar cegamente ao bipedalismo ou à respiração pulmonar. A crença de que permanecer terrestre era permanecer humano lhes parecia tão inconsequente quanto soava óbvia aos amurados.

A derradeira inundação de São Pedro da Enseada, agora definitivamente conectada ao oceano, agravou a divisão. O desmembramento da vila chegou a tal ponto que os cidadãos do solo seco passaram a residir em grandes domos de vidro, isolados e protegidos das águas, enquanto seus correlatos marítimos habitavam altos edifícios de recife que chegavam até a superfície hídrica, onde a luz solar era mais profícua. Os humanos do mar referiam-se derrogatoriamente à sua contraparte telúrica como “os aquarianos”, enquanto estes apelidaram pejorativamente os guelrados de “piscianos”.

A política local seguiu as linhas do novo desenho demográfico. Dentre os piscianos, elegeu-se Bento Gaspar como líder dos vereadores de oposição. O jovem jornaleiro tinha o dom discursivo dos oradores da Grécia Antiga aliado à ligeireza de pensamento dos cardumes de atum. Do lado aquariano, a primeira filha de dona Odete da loja de arraias, Odélia, assumiu a dianteira da bancada governista. Além do trabalho que exercera famosamente como secretária no escritório do delegado nos dias de saudosa sequidão, tinha a seu favor entre o eleitorado um conhecimento enciclopédico da legislação e a defesa dos costumes.

Os termos “opositor” e “governista” devem, no entanto, ser recebidos com ampla parcimônia, haja vista a relação ambígua de ambas aglomerações com o gabinete do prefeito (o prefeito que, a propósito, continuava sendo o mesmo dom Armando de sempre – ao menos da cintura para cima, a partir de onde mantinha os traços humanos inalterados; dali para baixo se tornara puro polvo, com oito tentáculos de ventosas insidiosas no lugar das antigas pernas). O que importa é saber que os dois grupos discordavam implacavelmente um do outro. Algumas vezes, ao que parece, só por discordar. Se um mudava de ideia sobre determinada questão, o outro imediatamente revia seu posicionamento na mesma medida, antagonizando-se aos ideais que defendia no dia anterior. Exceto, é claro, em temas sensíveis ao identitarismo dos seus respectivos eleitorados – nesses assuntos ambos eram obstinadamente intransigentes.

Nem mesmo o clérigo, outrora uma voz de união no vilarejo, ficara imune à polarização. Endurecido em sua fé, tornou-se um ferrenho aquariano de pregações obcecadas com as antigas tradições e recheadas de críticas ferozes às mutações biológicas dos piscianos – reflexo do pecado, segundo o reverendo. Chegaram a acreditar que concorreria a algum cargo público, mas ele recusou o convite da vereadora Odélia por temer que a corrida eleitoral o obrigasse a sorrir, prática que abandonara há tempos a fim de ocultar a segunda fileira de dentes na mandíbula.

Os indícios cartilaginosos do sacerdote dificilmente poderiam ser considerados excepcionais. De uma forma ou de outra, todos haviam sido afetados pela marificação de São Pedro da Enseada. A presença de barbatanas subdesenvolvidas ou brânquias vestigiais era quase universal entre os aquarianos – o que variava era a disposição em reconhecê-las e, pior ainda, utilizá-las. Eram frequentes os casos de internação por espasmos repentinos e virulentos de nadadeiras secretas, sem falar nas crises de pânico em decorrência do confinamento nas conchas de vidro ou dos sonhos de afogamento. Não que os piscianos pudessem se gabar de uma superioridade clínica em seu estilo de vida: pelo contrário, entre eles eram recorrentes os quadros de sufocamento súbito, depressão gravitacional e desnorteamento crônico, como se seus corpos mantivessem as vivências antigas gravadas na memória muscular.

O peso de tantos antagonismos, superestruturas submarinas e água finalmente começou a mostrar seus efeitos sobre o leito do mar (que, não nos esqueçamos, outrora fora serrania). De início, foi apenas uma rachadura que se delineou entre os dois lados da cidade, porém conforme os edifícios de recife de um lado e os domos envidraçados do outro pendiam para longe de si, a fenda ia se assemelhando cada vez mais a um abismo de onde sons monstruosos ronronavam fortes tremores que reverberavam por toda a cidade. Aquarianos e piscianos acusavam-se mutuamente de terem despertado um antigo Leviatã enterrado nas fissuras do ventre da Terra. Assim, ao invés de redirecionarem os centros gravitacionais de suas cercanias um em direção ao outro de forma a conter a falha geológica, os dois grupos repeliam-se ainda mais intensamente, acelerando o rasgo em seu anseio por segurança.

Quiçá estivessem numa missão para desmembrar o planeta em dois, com o objetivo de viverem em paz – cada qual na sua metade de astro –, mas a força de tensão superficial das águas provavelmente impediria o rompimento completo do globo. Restariam apenas os fragmentos de um corpo celeste despedaçado numa imensa bolha lamacenta a flutuar perdida pelo espaço. Esqueciam, ademais, o quanto suas vidas estavam interligadas: onde, afinal, os aquarianos comprariam suas folhas impermeáveis se não na papelaria do pisciano seu Lourenço? E os piscianos, onde adquiririam suas arraias coloridas se não no aquário de dona Odete? E dona Odete estaria disposta a aceitar a distância intergaláctica entre si e sua segunda filha, a golfinhesca Olívia? E Olívia preferiria mesmo nunca mais ver sua irmã mais velha, a vereadora Odélia, ou no fundo ainda ansiava por uma reconciliação familiar? E Odélia abriria mão do romance secreto com o opositor Bento Gaspar? Desfar-se-ia dos debates e beijos afogueados que compartilhavam na intimidade do leito? E Bento Gaspar abandonaria os jogos de gamão com o confidente seu João do mercadinho, cujos conselhos financeiros ajudavam a enriquecer sua astúcia nos assuntos de economia? E seu João estava preparado para nunca mais poder passar no bar do Toninho a fim de apertar a mão do antigo colega de escola e tomar uma dose de aguardente? E Toninho arcaria com a perda do melhor amigo de infância, o sorveteiro seu Fernando, que conhecia desde os tempos em que se comunicavam telepaticamente nos ventres das respectivas mães?

Foi por esses tempos de rasgadura do tecido da Terra que Jaiminho retornou a São Pedro da Enseada. A longa estadia no litoral mudara o rapaz, agora convertido em homem e peixe pleno. Contudo, ainda residia em seu peito o velho peso da história, e com ele o receio de ver feita novamente em carne viva a lembrança petrificada do passado. A cidade, no entanto, já não era como em suas memórias. Ele não soube dizer se o que sentiu com essa constatação foi felicidade ou melancolia. Abriu a porta da antiga casa, que mesmo encasulada num domo maciço exibia goteiras por entre as vigas de madeira empenada, e encontrou os pais distraídos e envelhecidos na sala, em frente à televisão. Ela tricotava; ele fingia prestar atenção no programa de auditório dominical. A surpresa da visita manteve-os paralisados por alguns instantes. Quando finalmente se levantaram emocionados para abraçar o filho, sentiu-se do outro lado do bairro um estranho tremor, diferente daqueles aos quais os moradores tinham se acostumado. Houve quem jurasse ter visto o lado oposto do abismo se aproximar um pouquinho da margem de cá, mas esses podem ter sido devaneios juvenis de almas excessivamente imaginativas.

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