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Amor Ocre

O teu amor tem um cheiro de déjà-vu que me faz acessar outros amores mais antigos entre os quais a memória ainda fresca de ti rapidamente se instala. É o odor das árvores ancestrais, dos olmos longevos que desenham de ocre a minha jornada pelos teus descaminhos; odor que me acomete com suas farpas finas – farpas frágeis ao toque, mas irrefreáveis no seu poder de perfuração; odor verde-musgo dos folículos delgados de pinheiro que facilmente amadeiram o ar que dança nos meus pulmões, seduzindo com sua beleza imemorial – mas que com igual espontaneidade se instalam dolorosos por entre as camadas da minha pele, pulsando nela uma ardência que oculta os vestígios do machucado.

É um cheiro que me faz querer entregar-me à desordem completa, ao caos de uma infância desgrenhada e cambaleante, de uma criança que caminha por entre estradas perfumadas sem conhecer os seus perigos. E assim ela vai, estabanada, tateando os carvalhos que ladeiam a passagem, abraçando os troncos e enchendo as mãos de arranhões prazerosos, beijando o líquen viscoso que se esconde por entre as lascas com os seus lábios delicados, sem sequer perceber desse passear vacilante o resultado.

A diferença é que hoje conheço os efeitos de uma tal jornada. Sei da inflamação que esse tocar desatento provoca; sei das longas horas, dos infindos dias que a cura desses percalços demanda. Já não sou tão criança, ainda que a lembrança do teu odor me faça, por um instante, querer ser. Desejo solenemente o abandono de mim; anseio por me esquecer e cair novamente por essas tuas vias que me esgotam; quero brincar de me conhecer por entre erros já cometidos, repetindo-os sem o mínimo conhecimento, como se me fossem inteiramente novos – como se novamente gozasse num jorro de novidade com as tuas ardidas perfurações em minha carne. Quase quero me entregar à jornada de ti para que me destruas.

Quase.

Pois a minha estatura não se-me permite. Olho-me no espelho disforme do rio e vejo os traços de água corrente, as linhas amansadas do seixo depositado no fundo de mim, e me reconheço desconhecido na idade. De repente a tua cor ocre não me importa. A emoção do passado revivido já passou. O desejo infantil de perfurar outra vez o dedo na roda da agulha parece-me insosso: o espinho tem uma aparência de madeira pútrida, coberta de mofo. Talvez aí esteja o segredo desse meu estado presente de ti: se teu odor me enfeitiça, por outro lado a visão dos teus desvios me desperta. Meus sentidos acessam estratos distintos de mim – eles levam a experiência de ti para átrios opostos da minha mente e, no choque de sensações, de repente me pareces exposto com demasiada veracidade. Já não vejo aventura em ti. Mas mentiria se ousasse dizer que assim mesmo não te desejo.

Pois que, mesmo estando tu assim exposto à vista, é a minha língua que anseia por passear sobre tua pele e engolir teu suor. Teu gosto me cativa como os sonhos antigos e apagados que se deseja rememorar para então transformar em matéria refeita: a memória afetiva de ti tem, afinal, sabor de gozos novos, ainda que neles se esconda o resquício do arcaico. E me parece que boa parte da novidade que sinto no gosto de ti vem não realmente de ti, mas de mim: percebo que minha língua se faz, agora que te encontra, de uma aspereza esguia, uma textura grossa e ácida que derrete os teus segredos e revela neles o macio oculto, a seiva que te esmeras em esconder. E encontro na tua fragilidade um perigo para você – tu, que não hás conhecido (como eu conheci) as memórias ancestrais do prazer. Parece-me que agora sou eu quem é perigoso a ti. Eu que, com um traço envenenado de verdades latentes e profundas, poderia, se quisesse, perfurar-te a casca enquanto tu tentas instalar teus ramos frágeis por entre as minhas fissuras. Pois as minhas fraquezas, as minhas vielas escuras, tu não as sabes achar com facilidade. Mas as tuas passagens não me são nada secretas.

Tu me amas como um rouxinol ferido. Teu canto me chega aos ouvidos como um lamento escondido enquanto tu passarinhas de peito estufado sobre o mundo. Pedes amor, mas só nas notas mais singelas do teu encanto, naquelas que te esmeras em disfarçar por entre as canções vultosas com que declamas a pretensa alegria do eterno prazer. E queres que eu te olhe cantar supostamente livre, ancorado no galho mais distante, enquanto revoadas em bando te circundam tentando chilrear-te em retorno a serenata de desamor. E te alegra pensar que eu te esteja mirando sob a copa das árvores, desejando ver teu pranto vertido em música junto com o meu. Mas que eu não ouse estender a mão! Eis aí qual seria o meu maior pecado. Tu me queres distante, longe o suficiente para que não se exponha o teu machucado. Queres manter sobre mim o poder do teu longínquo afago, demandando a minha presença apenas por um átimo, um instante de pouso encontrado. Mais do que isso e teu peito dói, e doer não é uma opção; mais do que isso e eu posso entender errado (é com essa ideia que te convences), posso querer mais do que me queres oferecer (e na verdade: mais do que podes verter de bom grado sem que o teu coração se derreta e comece a arder).

Conheço-te os descaminhos desse amor tortuoso, tão disforme que quase anti-amor. Já caminhei por muitas estradas que se-me ofereciam a mesma paisagem. Hoje sei navegá-las com mais segurança, ainda que em meu profundo pulse a esperança de me perder e esquecer o caminho de volta à proteção dos meus resguardos. A verdade é que por ti ainda guardo no peito esse desejo abjeto de me desfazer em perdição, como nos terríveis mitos de amor que cativaram durante Eras as gerações antepassadas de amantes. Quereria, talvez por alguns instantes, despetalar-me e assim me crer desabrochado; mas logo em seguida me lembro de mim, e o impulso passa tão rapidamente quanto se-me acometeu.

Eis então a minha ambiguidade de ti. Oscilo entre o rubro efervescente da carne que se desfibra de anseio e o amarelo dourado da minha iluminação, do meu abrigo ao sol que me sela e me salva do ímpeto de mim. E na mistura me faço de um amor cuja coloração é idêntica ao teu ocre dúbio e perfumado, desabrochando numa flor híbrida de laranja esquivo que esconde nas suas entranhas as raízes entrelaçadas da begônia vermelha e do girassol.

Mas a verdade é que essa alquimia amorosa de que me valho para te complementar não é a minha receita ideal. Essa diluição quimérica de um amor fadado a sedimentar é apenas a poção venenosa que pressinto ser do teu desejo, cuja demanda vejo desenhada nos teus cânticos que reivindicam um desamor anunciado numa profecia auto realizada. O meu verdadeiro amor tem a textura viscosa do mel; tem uma consistência que banha e enlaça na doçura oleosa das minhas palavras cobertas de saliva quente. Eu amo o amor secreto dos poetas do corpo, cuja alma transita concreta entre as linguagens da pele e do espírito; cuja língua devora e dá de comer à maneira dos deuses antigos em cujo longínquo reinado nenhum dos prazeres era proibido. O meu amar é o dos templos escondidos na selva, dos rituais esquecidos em cujos feitiços se faz um elixir de momentânea imortalidade; é o amar dos corpos nus e expostos à beira do mar – um mar cujas entranhas quentes ribombam em fúria para verter sobre a praia uma carícia espumada de borbulhas peroladas.

E este meu amor, se o quisesses, poderia ser teu, ainda que por uns instantes. Mas entendo que este sentimento feroz que ofereço pode ser perigoso a quem nunca o conheceu. Por isso não julgo tua resistência. Não julgo nem condeno. Por hoje, viveremos o amor ocre da segurança insegura que nos concatena; faremos amor sobre o muro e exporemos a nossa beleza com perigo e desconfiança. E há nesse outro amor, sem dúvida, poesia suficiente para nos saciar por uns dias. Mas por uns dias, apenas. O depois disso ao futuro pertence. E até lá, quedará no infinito desconhecido a promessa de outros amores mais profundos que eu declamaria por ti, se por acaso os nossos caminhos assim se fizessem.

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